Sob
a Lei e em Cristo
- Gálatas 3.23-29 –
Em
Gálatas 3.15-22 o apóstolo Paulo recapitulou 2.000 anos de história do Antigo
Testamento, desde Abraão e passando por Moisés, até Cristo. Mostrou também como
esses grandes nomes bíblicos estão relacionados entre si no desenrolar do
propósito de Deus, como Deus deu uma promessa a Abraão e uma lei a Moisés, e
como por meio de Cristo ele cumpriu a promessa que a lei revelara ser
indispensável, pois esta condenava o pecador à morte, enquanto que a promessa
lhe oferecia justificação e vida eterna.
Agora
Paulo desenvolve o seu tema mostrando que esse progresso da promessa através da
lei para o cumprimento da promessa é mais do que história do Antigo Testamento
e da nação judia. É a biografia de cada um de nós, ou, pelo menos, de cada
cristão. Toda e qualquer pessoa, ou está presa pela lei porque ainda está
aguardando o cumprimento da promessa, ou já foi libertada da lei porque herdou
a promessa. Mas simplesmente, toda e qualquer pessoa está vivendo no Antigo ou
no Novo Testamento e deriva a sua religião de Moisés ou de Jesus. Na linguagem
deste parágrafo, ou está “sob a lei” ou está “em Cristo”.
O
propósito divino para a nossa peregrinação espiritual é que passemos pela lei
até atingirmos uma experiência da promessa. A tragédia é que tanta gente separe
as duas coisas, desejando uma sem passar pela outra. Alguns tentam ir a Jesus
sem se encontrar primeiro com Moisés. Querem ignorar o Antigo Testamento,
herdar a promessa da justificação em Cristo sem o prévio sofrimento da
condenação pela lei. Outros vão a Moisés e à lei para serem condenados, mas
continuam nessa servidão infeliz. Continuam vivendo no Antigo Testamento. Sua
religião é um jugo lamentável, difícil de suportar. Jamais foram a Cristo para
serem libertados.
Ambos os estágios foram descritos nesta passagem. Os versículos 23 e 24
descrevem o que éramos sob a lei, e os versículos 25 a 29, o que somos em
Cristo.
1. O Que
Éramos Sob a Lei (versículos 23, 24).
Resumindo, estávamos na servidão. O apóstolo usa duas pitorescas
analogias nos versículos 23 e 24, nas quais a lei é comparada, primeiro a uma
prisão, na qual estávamos presos, e, então, a um tutor, cuja disciplina é cruel
e severa.
a. A prisão
(versículo 23)
“Mas, antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei, e nela
encerrados...” Vamos examinar os dois verbos. A palavra grega traduzida para
“estávamos sob a tutela da lei” (phroureo) significa “proteger com guardas
militares” (Grimm´Thayer). Quando aplicada a uma cidade, era usada tanto no
sentido de manter o inimigo fora como de guardar os habitantes dentro dela, para
não fugirem ou desertarem. Foi usada no Novo Testamento referindo-se à
tentativa de manter Paulo em Damasco: “Em Damasco, o governador preposto do rei
Aretas, montou guarda na cidade dos damascenos (presumivelmente colocando
sentinelas), para me prender”. Paulo escreveu (2 Co 11.32). E Lucas descreve
como os judeus “dia e noite guardavam também as portas para o matarem” (At
9.24). Assim, confinado à cidade, o único jeito de escapar foi através do
indigno procedimento de ser contrabandeado de noite através de uma janela no
muro, sendo baixado ao chão em um cesto. O mesmo verbo é usado metaforicamente
acerca da paz e do poder de Deus (Fp 4.7; 1 Pe 1.5), e aqui aplica-se à lei.
Significa “manter em custódia” (Arndt-Gingrich). O verbo “encerrar” (sungcleio)
é parecido e significa “impedir” ou “engaiolar” (Liddell e Scott). Seu único
uso literal no Novo Testamento aparece na narrativa de Lucas acerca da pesca
milagrosa, quando “apanharam grande quantidade de peixes” (Lc 5.6).
Assim, os dois verbos enfatizam que a lei e os mandamentos de Deus nos
mantinham na prisão, confinados, para que não pudéssemos escapar. A tradução da
BLH é a seguinte: “A Lei nos guardou como prisioneiros”.
Graças a Deus, porém, que nunca pretendeu que essa opressão fosse permanente.
Ele deu a lei na sua graça a fim de tornar a promessa mais desejável. Assim, às
duas descrições de nossa escravidão Paulo acrescenta aqui uma referência de
tempo: “Mas, antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei, e nela
encerrados, para essa fé que de futuro haveria de revelar-se” (versículo 23). “Além
disso, a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que
fôssemos justificados por fé” (versículo 24). São duas formas de dizer a mesma
coisa, porque “fé” e “Cristo” andam juntos. Os dois versículos nos dizem que a
obra opressora da lei foi temporária e tinha a intenção especial, não de ferir,
mas de abençoar. Seu propósito era nos prender até que Cristo nos libertasse,
ou colocar-nos sob tutores até que Cristo nos fizesse seus filhos.
Apenas Cristo pode nos libertar da prisão em que a
maldição da lei nos colocou, pois ele foi feito maldição em nosso lugar. Apenas
Cristo pode nos libertar da severa disciplina da lei, porque ele nos fez filhos
que obedecem por amor ao seu Pai e não somos mais crianças malcriadas que precisam
de tutores para puni-las.
2. O Que
Somos em Cristo (versículos 25-29).
Versículo 25: “Mas, tendo vindo à fé, já não permanecemos subordinados
ao aio”. A frase adversativa de Paulo, “mas...”, enfatiza que o que somos é
totalmente diferente do que éramos. Não estamos mais “debaixo da lei”, no
sentido de estarmos condenados e prisioneiros dela. Agora estamos “em Cristo”
(versículo 26), unidos a ele pela fé, e fomos por isso aceitos por Deus por
amor a Cristo, apesar de nossa deplorável transgressão.
Os
quatro últimos versículos de Gálatas 3 estão plenos de Jesus Cristo. O
versículo 26 diz: “Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo
Jesus”. Versículo 27: “porque todos quantos fostes batizados em Cristo, de
Cristo vos revestistes”. A BLH traduz: vocês “se revestiram com a pessoa do
próprio Cristo”. A referência talvez seja à toga virilis, que um menino vestia
quando entrava na maioridade como sinal de que era adulto. O versículo 28b:
“porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. Versículo 29: “e se sois de Cristo (isto
é, “já que vocês pertencem a Cristo” (BLH), também sois descendentes de
Abraão).”. Portanto, isso é o que é o cristão. Ele está “Em Cristo, foi
“batizado em Cristo”, foi “de Cristo revestido”, e “pertence a Cristo”“.
Agora Paulo desvenda três resultados dessa união
com Cristo.
a. Em Cristo
somos filhos de Deus (vers. 26 e 27)
Deus
não é mais nosso juiz, que através da lei nos condenou e nos aprisionou. Nem é
mais nosso tutor, que através da lei nos restringe e castiga. Já não o tememos
pensando no castigo que merecemos; nós o amamos com devoção filial profunda.
Não somos prisioneiros à espera da execução final de nossa sentença, nem filhos
menores sob a disciplina de um tutor, mas filhos de Deus e herdeiros de seu
glorioso reino, desfrutando o status e o privilégio de filhos adultos (este é o
único sentido em que o Novo Testamento permite usar o termo moderno que diz que
a humanidade já chegou à “idade adulta”).
Esta
filiação de Deus é “em Cristo”; não é de nós mesmos. A doutrina de Deus como um
pai universal não foi ensinada por Cristo nem pelos seus apóstolos. Deus é
realmente o Criador universal, dando existência a todas as coisas, e o Rei
universal, governando e mantendo tudo o que ele fez. Mas ele é o Pai apenas de
nosso Senhor Jesus Cristo e daqueles a quem ele adota em sua família através de
Cristo. Se quisermos ser filhos de Deus, então temos de estar “mediante a fé em
Cristo Jesus” (versículo 26), que é uma tradução melhor do que “pela fé em
Cristo Jesus”. É por meio da fé que estamos em Cristo e é estando em Cristo que
somos filhos de Deus.
Nosso batismo exemplifica visivelmente essa união com Cristo. Versículo
27: porque todos quantos fostes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes.
Possivelmente isso não quer dizer que o ato do batismo por si mesmo liga uma
pessoa a Cristo, ou que a simples administração da água torna-a filha de Deus.
Temos de dar crédito a Paulo quanto a uma teologia consistente. Toda esta
epístola foi dedicada ao tema da justificação pela fé e não pela circuncisão. É
inconcebível que agora Paulo substitua a circuncisão pelo batismo e ensine que
estamos em Cristo pelo batismo! O apóstolo explicitamente torna a fé o meio de
nossa união com Cristo. Ele menciona a fé cinco vezes neste parágrafo, mas o
batismo apenas uma vez. A fé garante a união; o batismo é a sua representação
externa e visível. Assim, em Cristo, pela fé interior (versículo 26) e pelo
batismo exterior (versículo 27), somos todos filhos de Deus.
b. em Cristo
somos todos um (versículo 28)
Literalmente, “todos vocês são um só por estarem unidos com Cristo Jesus
(BLH). Em Cristo não apenas pertencemos a Deus (como seus filhos), mas também
uns aos outros (como irmãos e irmãs). E pertencemo-nos uns aos outros de tal
maneira que já não damos mais importância àquelas coisas que normalmente nos
diferenciam, isto é, raça, categoria e sexo.
c. Em
Cristo, somos semente de Abrão (versículo 20)
“E, se sois de Cristo, também sois descendentes de
Abraão, e herdeiros segunda a promessa”.
Vimos que
em Cristo pertencemos a Deus e uns aos outros. Em Cristo também pertencemos a
Abraão. Assumimos o nosso lugar na nobre sucessão histórica da fé, cujos
notáveis representantes encontram-se relacionados em Hebreus 11. Já não nos
sentimos mais perdidos e desgarrados, sem nenhum significado na história, ou
como pedacinhos de destroços sem valor à deriva sobre as ondas do tempo. Pelo
contrário, encontramos o nosso lugar no desenrolar do propósito divino. Somos a
descendência espiritual de nosso pai Abraão, que viveu e morreu há 4.000 anos,
pois em Cristo nos tornamos herdeiros da promessa que Deus lhe fez.
Esses, então, são os resultados de estar “em Cristo”; e eles têm uma
relevância poderosa para nós nos dias de hoje, pois a nossa geração está
ocupada, desenvolvendo uma filosofia de falta de sentido. Hoje em dia está na
moda acreditar (ou dizer que acreditamos) que a vida não tem sentido nem
propósito algum. Muitas pessoas admitem que não têm motivos para viver. Acham
que não pertencem a nada, ou, se pertencem, é ao grupo conhecido como “os
descompromissados”. Classificam-se em “forasteiros”, “desajustados”. Não têm
âncoras, nem segurança, nem lar. Na linguagem bíblica, estão “perdidos”.
Para
essas pessoas há a promessa de que em Cristo nós nos encontramos. Os
descompromissados assumem compromissos. Encontram o seu lugar na eternidade
(relacionados em primeiro lugar e principalmente com Deus, como seus filhos e
filhas), na sociedade (relacionados uns com os outros como irmãos e irmãs na
mesma família) e na história (relacionados à sucessão do povo de Deus através
dos séculos). É um compromisso tridimensional que assumimos quando estamos em
Cristo: na altura, na largura e no comprimento. É um compromisso em “altura”
através da reconciliação com Deus que, embora os teólogos radicais repudiem
este conceito e devamos ser cuidados na sua interpretação, é um Deus “acima” de
nós, transcendente ao universo que ele criou. Depois, é um compromisso em
“largura”, considerando que em Cristo estamos unidos a todos os outros crentes
do mundo inteiro. Terceiro, é um compromisso em “comprimento”, pois nos ligamos
á longa, longa linha de crentes através de todos os tempos.
Assim, a conversão, embora seja sobrenatural em sua origem, é natural em
seus efeitos. Ela não rompe com a natureza, mas completa-a, pois me coloca no
lugar ao qual eu pertenço. Ela me relaciona com Deus, com o homem e com a
história. Ela me capacita a responder a mais básica de todas as perguntas
humanas: “Quem sou eu?” e a dizer: “Em Cristo eu sou um filho de Deus. Em
Cristo estou unido a todo o povo remido de Deus, no passado, no presente e no
futuro. Em Cristo eu descubro a minha identidade. Em Cristo sei onde ponho os
meus pés. Em Cristo eu volto para casa”.
Conclusão
O
apóstolo pintou um contraste vivido entre aqueles que estão “sob a lei” e
aqueles que estão “em Cristo”; e todas as pessoas pertencem a uma categoria ou
à outra. Se estamos “sob a lei”, a nossa religião é uma servidão. Não tendo
conhecimento do perdão, continuamos ainda sob custódia, como prisioneiros ou
filhos sob tutela. É triste ficar na prisão ou no berçário quando poderíamos
ser adultos e livres. Mas, se estamos em Cristo, somos libertos. A nossa
religião se caracteriza pela “promessa” e não pela “lei”. Sabemos que estamos
relacionados com Deus, com todos os outros filhos de Deus no espaço, no tempo e
na eternidade.
Não
podemos ir a Cristo para sermos justificados se não formos primeiro a Moisés
para sermos condenados. Mas, depois de irmos a Moisés, e tendo reconhecido o
nosso pecado, a nossa culpa e a nossa condenação, não devemos ficar lá. Devemos
permitir que Moisés nos leve a Cristo.
Autor: John
Stott
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